Sonhos e o modelo de mente da Psicanálise

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28 de junho de 2020

Sonhos e o modelo de mente da Psicanálise

por Ana Clara Duarte Gavião [1]

Os  sonhos, portanto, pensam predominantemente em  imagens visuais — mas  não exclusivamente. Utilizam também imagens auditivas e,  em menor grau, impressões que  pertencem aos  outros sentidos. Além disso, muitas coisas ocorrem nos sonhos (tal como fazem normalmente na vida de vigília) simplesmente como pensamentos ou representações — provavelmente, bem entendido, sob  a forma de resíduos de representações verbais. (Freud, 1900/1990a, p. 79).

A relevância do tema “sonhos” deve-se ao fato de que a concepção psicanalítica de mente é fruto da genialidade de Freud ao perceber, principalmente em si mesmo, que os sonhos realizam um processamento psíquico das experiências sensoriais e afetivas vivenciadas pelo ser humano no decorrer da vida, atribuindo-lhes um sentido emocional.

No modelo freudiano de sonhos, este trabalho psíquico é ininterrupto, como também são contínuos os estímulos vitais externos e internos, geradores de registros mnêmicos que demandam um continente inconsciente para seu armazenamento, de modo a liberar a atenção consciente para as funções de convivência e sobrevivência. Quando esse processamento onírico falha – quando não é possível sonhar – o continente interno se fragmenta e os conteúdos inconscientes e conscientes não mais se diferenciam, configurando estados psicóticos.

É interessante constatar como na comunidade psicanalítica há uma tendência de enfatizar, no modelo freudiano, a função do sonho de “guardião do sono” e de “realização de desejos”, subestimando, de certa forma, sua função principal de “guardião da saúde mental” e, portanto, de figurabilidade, pensabilidade e diferenciação entre as instâncias inconsciente (Ics) e pré- consciente/consciente (Pcs-Cs), o que é detalhadamente explicitado por Freud no desenvolvimento dos capítulos de “A interpretação de sonhos” (1900/1990a).

Vale ressaltar a complexidade da premissa freudiana sobre a função de realização de desejos dos sonhos, já que a engenhosidade envolvida para atender ao desejo, em alguma medida preservando a consideração por limites da realidade concreta, implica que processos psíquicos
primários possam ser transformados por processos secundários, equivalentes ao pensar.

Embora Freud não tenha se dedicado à clínica das psicoses, a metapsicologia relevante para a compreensão de estados psicóticos (e não psicóticos) foi por ele formulada em 1900, evidenciando que a impossibilidade de sonhar na psicose decorre da ascendência ao Pcs-Cs de elementos carregados de sensorialidade e desejos, desprovidos de qualidade simbólica. A “tela da censura” é rompida quando o guardião do sono e da saúde mental – o sonho – é subjugado por esses impulsos inconscientes não ligados a elementos com qualidade psíquica de representabilidade, levando ao acordar, à incapacidade de sonhar, de pensar e a actings ou sintomas.


É claro que as moções de desejo inconscientes tentam tornar-se eficazes também durante o dia, e o fato da transferência, assim como as psicoses, indicam-nos que elas lutam por irromper na consciência através do sistema pré-consciente e por obter o controle do poder de movimento. Assim, a censura entre o Ics. e o Pcs., cuja existência os sonhos nos obrigaram a supor, merece ser reconhecida e respeitada como a guardiã de nossa saúde mental. (Freud, 1900/1990a, p. 517-518, grifos nossos)

Um telefone sem fio e um fio da meada

Provavelmente padecemos de certa resistência a ler e estudar integralmente esse texto básico de 1900, fenômeno que parece se manifestar nas várias gerações de psicanalistas. No pós- escrito de 1909 ao primeiro capítulo de “A interpretação de sonhos”, bem como em “A história do movimento psicanalítico” (1914/1990b), “Um estudo autobiográfico” (1925/1990c) e nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933/1990d), Freud refere-se à falta de compreensão de sua teoria dos sonhos e a críticas de autores que sequer leram seu livro! Na “Revisão da teoria dos sonhos” (Conferência XXIX), ele comenta:


Algumas fórmulas passaram a ser do conhecimento geral, entre elas algumas que nós nunca apresentamos – tal como a tese de que todos os sonhos são de natureza sexual –, mas coisas realmente importantes, como a fundamental diferença entre o conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos oníricos latentes, a percepção de que a função de realização de desejos dos sonhos não é contradita pelos sonhos de ansiedade, a impossibilidade de interpretar um sonho a menos que se tenha à disposição as respectivas associações do sonhador, acima de tudo a descoberta de que o essencial nos sonhos é o processo de elaboração onírica – tudo isso ainda parece quase tão alheio ao conhecimento da maioria das pessoas, como há trinta anos. (1933/1990d, p. 18)

O problema chama a atenção porque, mesmo considerando os inegáveis avanços teóricos e técnicos proporcionados pelos grandes autores da psicanálise que se seguiram, eles só aconteceram porque esses autores se aprofundaram no modelo de mente de Freud, que corresponde essencialmente ao respectivo modelo de sonho, ou seja, pensadores que se alimentaram daquilo que é originário no campo psicanalítico, origens que podem facilitar a compreensão de tais inovações pós-freudianas, bem como estimular a liberdade para elaborar teorias próprias.

Será que na transmissão e recepção dos conhecimentos psicanalíticos, no decorrer dos anos, estaríamos nos desconectando de suas fontes originais, numa espécie de telefone sem fio? Por exemplo, não é raro atribuir-se a Bion a originalidade do conceito de “pensamento onírico de vigília”, sendo que este é o aspecto central da primeira tópica freudiana, a essência da concepção de inconsciente, reconhecida e citada em diversas passagens pelo próprio Bion, em sua obra. No primeiro capítulo de “A interpretação de sonhos”, no item D – “Por que nos esquecemos dos sonhos após o despertar” – Freud faz uso de uma bela metáfora: “Os sonhos cedem ante as impressões de um novo dia, da mesma forma que o brilho das estrelas cede à luz do sol.” (1900/1990a, p. 75).

Não podemos perceber nitidamente nossos sonhos durante a vigília, mas eles estão presentes, fluindo, e por isso a função psicanalítica é complexa, no entanto perfeitamente viável mediante intensivo treinamento para o contato com a vida psíquica (análise pessoal), para associação livre e atenção flutuante, reverie, sem memória e desejo de compreensão (na proposição bioniana), ou, como propõe Freud, para o estado de “auto-observação acrítica”, em repouso e receptividade a ideias involuntárias.

Não se trata de idealizarmos o pensamento freudiano, ou diminuirmos o valor original e criativo do pensamento dos autores que também se tornaram clássicos e dos autores contemporâneos, mas sim de apreendermos certo fio da meada útil para a clareza do modelo.

Não apenas na citação de 1933, ele nos alerta quanto à frequente confusão que se faz entre “conteúdo manifesto do sonho” e “pensamentos oníricos latentes”, o que impede a compreensão de que o “trabalho do sonho” (Pcs) – condensação, deslocamento, consideração à representabilidade e elaboração secundária – opera sobre os pensamentos oníricos inconscientes, criando uma filtragem, ou seja, o sonhar equivale a elaborar secundariamente, a pensar os pensamentos oníricos latentes: “uma atividade crítica de pensamento, que não é uma simples repetição do material dos pensamentos do sonho, tem efetivamente uma participação na formação dos sonhos.” (Freud, 1900/1990a, p. 300, grifo no original).

Neste mesmo texto de 1900, Freud desenvolve e reformula certas proposições iniciais, já que teve a oportunidade de acompanhar, revisar e prefaciar oito edições, sendo a última de 1931. Em notas de rodapé ou em acréscimos de parágrafos, tais desenvolvimentos teóricos estão contemplados e notificados pelo revisor geral, integrando ao modelo a reformulação da teoria dos instintos (instinto de morte), a formulação da “segunda tópica” (id, ego e superego) e a “ansiedade sinal” (a ansiedade levando à repressão, e não o contrário), sustentando a premissa da função de realização de desejos também nos sonhos desprazerosos, de angústia ou de punição.

Os afetos, no sonho, adquirem um lugar central, igualados aos experimentados na vigília: “Se temo ladrões num sonho, os ladrões, é certo, são imaginários – mas o temor é real.” (Stricker, 1879, citado por Freud, 1900/1990a, p. 427). A partir de suas pesquisas, Freud conclui que, apesar da distorção dos pensamentos oníricos latentes (deslocamentos e condensações para escaparem à censura pré-consciente) os afetos permanecem intactos no sonho manifesto, ou, então, são suprimidos de forma evidente ou transformados em seu oposto, o que também indica sua força psicodinâmica e a centralidade das experiências emocionais.

Além da relevância metapsicológica do modelo freudiano dos sonhos, vemos neste livro de 1900 valiosas contribuições sobre a técnica do método interpretativo da psicanálise – a associação livre (capítulo II – “sonho modelo”). A contraposição entre a atitude mental de “reflexão” (tensão/ideias voluntárias) adotada pelo cientista clássico e a de “auto-observação acrítica” (repouso/ideias involuntárias) requerida ao psicanalista é realçada quando Freud descarta o método de decifração por seu caráter arbitrário e puramente mecânico e entende a interpretação simbolicamente preconcebida como meramente acessória (quando há símbolos tipicamente universais), caracterizando como psicanalítica apenas a interpretação baseada nas associações livres do sonhador.

O relato do fluxo de associações livres durante a interpretação do sonho que ele teve com sua paciente Irma permite observar a complexa rede afetiva subjacente aos entraves transferenciais e contratransferenciais relacionados às resistências e somatizações da paciente e às “transferências” 2 do analista (vivências cotidianas de Freud com sua esposa, filha, irmão, amigos, outros pacientes, etc. transferidas à cena onírica), levando à interpretação principal do sonho como a realização de seu desejo de isentar-se da responsabilidade pelo insucesso desta análise. A aguçada auto-observação durante o trabalho interpretativo, o desprendimento para expor dificuldades pessoais, neste e nos demais capítulos onde Freud relata outros sonhos seus, mostra o analista trabalhando com sua própria mente, procedimento que tem sido bastante valorizado pelos teóricos da técnica contemporânea.

Assim, a assimilação conceitual do método psicanalítico e de suas evoluções históricas pode ser favorecida pela familiaridade com conceituações básicas, criativamente construídas no setting clínico. Nessa perspectiva, podemos dialogar com nossos pacientes, com colegas psicanalistas e de outros campos do saber, a partir de uma identidade científica/artística autêntica, pois como sabemos, além do intelecto, a intuição e a conexão com os próprios afetos e sonhos são ferramentas preciosas para exercer a arte da psicanálise…

Referências

Freud, S. (1990a). A interpretação de sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das  obras psicológicas completas de  Sigmund Freud (J.  Salomão, Trad., Vols.  4-5, pp.  1-566). Rio  de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)

Freud, S. (1990b). A história do movimento psicanalítico. In S. Freud, Edição standard brasileira das  obras psicológicas completas de  Sigmund Freud (J.  Salomão, Trad., Vol.  14,  pp.  12-82). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)

Freud, S. (1990c). Um  estudo autobiográfico. In S. Freud, Edição standard brasileira das  obras psicológicas completas de  Sigmund Freud (J.  Salomão, Trad., Vol.  20,  pp.  11-92). Rio  de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925 [1924])

Freud, S.  (1990d).  Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXIX   – Revisão da  teoria dos  sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das  obras psicológicas completas de  Sigmund Freud (J.  Salomão, Trad., Vol.  22,  pp.  17-43). Rio  de  Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933 [1932])


[1]  Supervisora clínica do CEPSI, membro associado da SBPSP e doutora em  Psicologia Clínica pelo IPUSP.
[2]  O termo “transferência” é utilizado por Freud em  algumas passagens num sentido sutilmente diferente do que depois se tornou usual, referindo-se à identificação de afetos próprios vivenciados em suas relações interpessoais, projetados nas imagens das  personagens das cenas oníricas, uma ideia precursora do conceito de identificação projetiva, posteriormente concebido por Melanie Klein e desenvolvido por Bion.