O estupro e suas consequências psíquicas na mulher

Sonhos e o modelo de mente da Psicanálise
17 de setembro de 2020

O estupro e suas consequências psíquicas na mulher

por Gina Khafif Levinzon[1]

O horror do estupro infelizmente assombra a humanidade, desde tempos imemoriais. Deparamo-nos com situações que desafiam a capacidade de sobreviver a traumas tão intensos.

O estupro pode ser definido como uma forma de sexo forçado, imposto com intimidação e expressão de poder de uma pessoa sobre a outra. É uma situação de uso e abuso do corpo-mente do outro sem que este último participe com desejo, necessidade ou vontade própria. Ele representa para a vítima uma situação traumática de grande intensidade. Produz dano emocional e lesões na integridade corporal. (Hercovich, I., 1997; Cantis-Carlino, 2005). O estuprador realiza um violento ato de autoerotismo sádico, que faz com que a vítima seja um mero objeto de sua descarga. Não há sentimento, mas sim excitação e violência. O estuprado vivencia uma situação limite entre a vida e a morte, um trauma de grande magnitude. A angustia presente nele é de aniquilamento, de terror paralisante e desamparo extremo.

A situação traumática aterrorizante funciona como uma inundação de afetos não simbolizados (Baranger, Baranger e Mom, 1987). A violência desestrutura a trama subjetiva, provoca a desestabilização da organização psíquica pré-existente. A capacidade de simbolização é prejudicada e na maioria dos casos bloqueada, com consequências patogênicas importantes. O terror é uma ansiedade paranoide paralisante. Como um vampiro, o estuprador rouba a feminilidade ou a infância para nutrir-se e seguir vivendo. (Cantis-Carlino, 2005).  Ao mesmo tempo que vampiriza a libido da vítima, ele evacua conteúdos degradados e persecutórios que inocula no objeto.

É muito frequente encontrarmos na mulher violentada uma tendência a se desmerecer, a sentir vergonha, culpa e responsabilidade pelas ações do agressor. Muitas vezes reluta em denunciar o estupro, como se isso fosse aumentar seu sentimento de exposição de características pessoais reprováveis. Ela sente muito medo: de trabalhar, de sair, de estudar, de se divertir (Vilhena e Zamora, 2004).  O medo e em seu extremo, o horror, é paralisante. Também teme julgamentos e suposições sobre seu caráter moral, seus costumes e seu passado sexual. Questões lancinantes muitas vezes rondam em seus pensamentos e nos das pessoas que a rodeiam: se sobreviveu ao estupro, é porque não houve oposição suficiente ou quem sabe, até alguma sedução no episódio. Por que não fugiu, por que não reagiu agredindo o violador, por que não gritou? Inconscientemente, sua sexualidade pode ser colocada em julgamento por ela mesma: terá transbordado sem controle, seduzindo o agressor? Fantasias edípicas infantis podem encontrar caminho para se manifestar e amplificar acusações superegoicas. A fantasia inconsciente da menina sedutora que atrai o pai irresponsavelmente pode tomar lugar nesse momento dramático.

A psicanálise oferece à pessoa que sofreu o estupro a possibilidade de elaborar essas vivências aterrorizantes e de elaborar os traumas e conflitos suscitados.  Nas palavras de Bion (1962), Elementos Beta, sensações brutas, são transformados em Elementos Alfa, associações, imagens, pensamentos. O processo de terapia permite à paciente sair do estado de congelamento e de horror. Sua capacidade de encontrar um espaço de contenção e transformação das angustias e sentimentos penosos pode se expandir. Aos poucos o trabalho analítico favorece o esmaecimento da dor psíquica, e permite que a pessoa possa retomar sua vida, enriquecida e transformada pelas elaborações realizadas.

Referências bibliográficas

Baranger, W.; Baranger, M.; Mom, J. – “El trauma psíquico infantil, de nosotros a Freud”. Trauma puro, retroactividad y reconstrucción” Congreso Internacional de Psicoanálisis. Montreal, 1987.

Bion, W. R. – (1962) O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago ed., 1991.

Cantis-Carlino, D.Violación y trauma. Psicoanálisis AP de BA, v. XXVII, n. 1/2, 2005.

Freud, S. (1920)Mais além do princípio do prazer. In Obras Completas, v.18,  Imago, 1980.

Hercovich, I.El enigma sexual de la violación. Buenos Aires, Ed. Biblos, 1997.

Vilhena, J. e Zamora, M. H.Além do ato: os transbordamentos do estupro. Revista Rio de Janeiro, n. 12, jan-abril 2004. 


[1]  Psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Doutora em Psicologia Clínica (USP), Professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica CEPSI-UNIP.